Quarta-feira, 30 de outubro de 2024

As preciosas lições dos argentinos

A metáfora futebolística, dada a sua riqueza e semelhança com o cotidiano de nossas vidas, nos permite passeios conceituais e devaneios também, estes bem mais pródigos em tempo de desalento existencial como este que acomete o nosso tempo. Desalento que parece ter atingido a Seleção Canarinho, uma das memórias afetivas mais impactantes dentro do conjunto de coisas desimportantes que nos entretêm, enquanto tratamos das coisas importantes e seguimos em frente. Nenhuma análise, porém, deve ser levada a cabo sem o contraste, sem comparações que nos permitam situar em que estágio estamos, particularmente quando olhamos para o nosso passado, já não tão recente, ou para o comportamento de alguns de nossos rivais históricos. E, assim, parando e refletindo, surge a pergunta: onde erramos? Que tipo de comportamentos estão levando o “Escrete Nacional” a amargar um jejum tão elástico de títulos mundiais e desesperançar a tantos, justamente agora que vitórias poderiam ser um bálsamo para almas desalentadas com a realidade dos nossos dias? Nossos vizinhos argentinos, entretanto, parecem que (re)encontraram o caminho.

E (re)encontraram o caminho deixando preciosas lições para quem quiser aprender. As vitórias na última Copa do Mundo e, neste último domingo, da Copa América, ratificaram as virtudes da Seleção Argentina que, embora não sejam de hoje, denotam que alguns fundamentos, notadamente atitudinais, não envelhecem. E é justamente nesse aspecto, na questão comportamental, que parece que estamos perdendo o jogo. Talvez seja temerário afirmar que os argentinos tenham naturalmente mais “garra”, mais “pegada”, mais envolvimento com o jogo, mais disposição para lutar por cada bola, se entregar em campo e defender as cores de sua camisa com comovente denodo. Claro que nenhum argentino nasce com todos esses atributos, mas certamente essas atitudes são forjadas desde a mais tenra infância, seja em casa, seja na escola, seja em sociedade. Tudo sugere que a “alma castelhana” tão presente nos times e seleções platinas é um traço cultural, uma mentalidade que se expressa num conjunto de competências futebolísticas emocionais que se convertem num diferencial de extrema importância, sobretudo hoje, quando o futebol ganhou contornos de uma disputa quase que científica por cada palmo do gramado.

Enquanto isso, além dos históricos problemas estruturais que acometem o esporte número um do País, padecemos nos últimos anos de uma indesejável passividade de parte importante de nossos atletas, espelhadas num “modo de ser” autocentrado cujos reflexos transbordam para dentro de campo. Somos, nosso passado prova isso, uma fábrica extraordinária de talentos, atualmente sendo vendidos ao exterior muito cedo, o que poderia ensejar uma saudável incorporação de comportamentos como maior disciplina e organização tática, que nunca foram exatamente o ponto forte de nossas equipes. Contudo, segundo a grande maioria da imprensa esportiva, o que se observa em campo e fora dele é produto de um narcisismo exacerbado por parte de muitos atletas, vários deles mais preocupados com suas próprias imagens do que comprometidos, de fato, com os destinos da Seleção Brasileira.

Com o futebol tendo evoluído para um esporte de altíssimo desempenho, no qual aspectos táticos, se articulam e se fundem com questões técnicas e de condicionamento físico, a mentalidade, ou seja, o conjunto de atitudes voltadas para o entendimento integral desse esporte, passa a ser decisiva para a competitividade das equipes. Não é, assim, na parte tática ou técnica que reside o nosso problema, mas exatamente na incorporação de uma nova mentalidade, sintonizada com esse novo momento do futebol mundial, no qual existe a necessidade da fusão entre o saber e o querer jogar. A lição que os argentinos nos oferecem, podem e devem ser objeto de uma profunda reflexão por todos aqueles que desejam ver o nosso Escrete Canarinho de volta ao topo e tudo sugere que precisamos de uma nova mentalidade para que esta mudança ocorra.

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