Quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Coerência na era da memória eterna

Nas diversas pesquisas realizadas sobre a confiança dos brasileiros nas instituições, invariavelmente o Congresso tem figurado nas últimas posições. Os brasileiros, de forma geral, e com as exceções de sempre, não confiam em seus políticos. Uma das causas mais evidentes tem sido a falta de coerência entre o discurso e a prática. A coerência é uma daquelas virtudes que afeta diretamente a noção de credibilidade, de sensatez, de confiança. Coerente é quem mantém suas opiniões e seus princípios; que possui comportamentos alinhados a suas convicções. É ainda ligação, harmonia, conexão ou nexo entre os fatos ou as ideias, identidade de algo com sua finalidade. Definir coerência, é verdade, tem sido bem mais simples do que observá-la no comportamento das lideranças constituídas. Já foi mais fácil, até há bem pouco tempo, camuflar a incoerência valendo-se da falta de memória das pessoas. Com a internet, entretanto, os vídeos, textos e matérias postadas na rede estão disponíveis “ad infinitum” e desmentem falas que hoje buscam novos acordos, muitos deles contrastando senão negando o que foi dito no passado. Seria muito salutar se tivéssemos um mundo mais coerente, uma sociedade mais conectada com seus propósitos, relações pessoais mais harmônicas e, por que não, a prática política sendo exercida com maior responsabilidade. Entretanto, estamos a anos-luz desse desejo. Multiplicam-se os casos de incoerência na política. O tema, como se deduz facilmente, não é novo, mas vem ganhando notoriedade na proporção exata do tamanho dos descalabros, contradições e mentiras diariamente destilados no cotidiano da Nação.

Um exemplo histórico, e que ocorreu muito antes da revolução das mídias digitais, teve curso em 1936, quando Olga Prestes, comunista e judia, mulher do líder comunista brasileiro Luís Carlos Prestes, foi entregue pelo Governo de Getúlio Vargas para os nazistas, após polêmica decisão do STF. Acabou assassinada em um campo de concentração na Alemanha, em 1942. Em 1945, Prestes manifesta seu apoio a Vargas, justificando muitos anos depois que, embora “detestasse o senhor Getúlio Vargas”, era importante unir forças contra o nazismo, principal inimigo da humanidade a ser combatido naquele trágico momento histórico.” Prestes se valeu do “mal maior” a ser eliminado como argumento para explicar um comportamento contrário à lógica, afinal sua mulher havia sido entregue aos nazistas por aquele a quem Prestes fazia agora um aceno de aproximação. Mais recente, e bem menos dramática, foi a cena do Ex-Ministro Rubens Ricupero, falando de forma descuidada, com o microfone aberto e “livre de escrúpulos” que “o que é bom a gente fatura e o que é ruim a gente esconde”, deslize que sinalizava o alvorecer da eterna memória virtual que a nada esquece ou perdoa.

Mesmo à luz dessa memória em rede, alguns políticos não perdem o sono se as ações de hoje não se conectam coerentemente com os discursos de ontem, desde que seus interesses, muitos deles pessoais e até inconfessos, sejam atendidos. Num notável processo de adaptação aos novos tempos, nem mesmo as imagens e palavras de outrora trazidas à tona constrangem às sempre providenciais explicações. Para o Ex-Governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, a propósito, a razão do “mal maior a ser evitado”, tão oportunamente usada por Prestes em 1936, caiu como uma luva para fazer crível sua aliança com o PT para as próximas eleições. Pragmatismo e utilitarismo se unindo para tornar razoável uma improvável união. Não menos incoerente tem sido a justificativa da aproximação do atual Governo Federal com o chamado “Centrão”, ojeriza antes expressa no indefectível refrão entoado pelo General Augusto Heleno: “se gritar pega o centrão, não fica um meu irmão” que agora é relativizado em nome da necessária governabilidade. São os fins justificando os meios, recuperando a ética maquiavélica e enterrando as virtudes aristotélicas, num pragmatismo que faria corar o filósofo florentino e que constrange o nosso futuro.

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