Sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

É possível ter uma morte bela, diz geriatra especialista em cuidados paliativos

A única certeza que temos na vida é a de que vamos morrer. Mas, apesar de a morte ser algo do qual não podemos escapar, receber o diagnóstico de uma doença que ameaça a continuidade da vida é assustador, causa medo, dor e angústia. E, na maioria das vezes, não estamos preparados para falar sobre a possibilidade de morrer.

A médica geriatra Ana Claudia Quintana Arantes, que há 30 anos tem se aprofundado na experiência de cuidados paliativos, é uma das especialistas que tentam nos ensinar a dialogar sobre esse momento. Sua palestra no TEDx, “A morte é um dia que vale a pena viver”, acumula mais de 3,8 milhões de visualizações no YouTube e o livro de mesmo nome foi um sucesso de vendas.

Agora, com “Cuidar até o Fim”, da editora Sextante, ela fala sobre a perspectiva da finitude e aponta a importância de trazer clareza para as escolhas, reavivar lembranças  nos ajuda a conduzir as etapas do adoecimento oferecendo conforto e gentileza. Veja abaixo trechos da conversa com a geriatra.

O que são cuidados paliativos?

Os cuidados paliativos fazem parte de uma abordagem dentro da área da assistência à saúde para aliviar o sofrimento de um ser humano que enfrenta uma doença ameaçadora de vida. Quando uma pessoa descobre uma doença e se depara com a existência de algo que a faz correr risco de vida, ela passa por sofrimentos em todas as dimensões humanas. Começa com o sofrimento físico, que é o mais óbvio, mas passa pelo sofrimento emocional; pelo sofrimento familiar, social e espiritual.

Os pacientes em cuidados paliativos se sentem frente à inevitabilidade da morte. Isso é algo muito grande que eles terão que atravessar e eles podem ter medo dessa travessia. Os cuidados paliativos os ajudam a ter sabedoria de como lidar com esses sofrimentos e os ensinam como conduzir isso. Primeiro a gente alivia o sofrimento físico, depois temos as conversas mais delicadas sobre como o paciente quer que seja a sua morte.

Por que ainda se tem a ideia de que cuidados paliativos só envolvem doentes terminais?

Porque historicamente tivemos um tempo na medicina em que não conseguíamos mudar a história natural das coisas. Não existia antibiótico; não existia quimioterapia; não tínhamos avanços cirúrgicos mais complexos; não havia transplantes. A medicina era cuidar com as poucas opções que existiam.

Com os avanços tecnológicos, evolução de medicamentos e tratamentos, a medicina passou a ter a tarefa de evitar a morte, ou seja, quando eu não evito a morte significa que fracassei e que não tenho mais nada para fazer. Vivemos a cultura de que é preciso levar o paciente para o hospital para evitar que ele morra. A partir daí não se fala mais de morte. Por que morrer se temos todos esses avanços? Então ficou subentendido que o cuidado paliativo significa que o paciente está nos minutos finais. Mas isso está equivocado. Cuidados paliativos não significam fracasso.

Existe diferença entre paciente paliativo e paciente terminal?

Na verdade, a gente nem deveria usar o termo paciente terminal porque a definição de terminalidade não é relacionada a tempo, e sim à condição clínica do paciente. O que isso significa? A terminalidade é quando a pessoa chega em uma fase da doença em que, naquele momento, não tem mais nada que a medicina possa oferecer que impeça o seu curso natural e, por isso, o desfecho será a morte.

Você pode ter uma terminalidade com tempos variáveis. Poder ser um caso de paciente que vai morrer em horas; em dias; em semanas; em meses ou até em anos. Tem situações de terminalidade em que o paciente vive por muito tempo, como se caminhasse numa corda bamba. Não tem mais nada a ser oferecido, mas se ele não se desequilibrar, se ninguém empurrar, ele segue a vida numa boa. Mas se ele tiver qualquer outro problema de saúde, ele pode não sustentar o equilíbrio e morrer.

Então todos os pacientes, do diagnóstico à morte, todos que sofrem diante de uma doença ameaçadora de vida são pacientes merecedores de cuidados paliativos. E todos os que estão na sua fase de terminalidade devem receber cuidados paliativos exclusivos.

Ao receber o diagnóstico, qualquer pessoa pode entrar em cuidados paliativos?

Sim, mas qual é a primeira barreira que você vai encontrar? A do médico e da equipe que atende essa pessoa. Há vários casos de pacientes que dizem ao médico que querem passar por cuidados paliativos e ouvem que ainda não é a hora. A pessoa está sofrendo, sente dor, está com a família em colapso, tem dificuldade para trabalhar, está com limitações, mas não consegue iniciar os cuidados paliativos porque ouve do profissional de saúde que eles são “só para pacientes terminais, sem opção de tratamento”.

Infelizmente, o serviço não está disponível para pacientes em fases mais precoces da doença. Hoje temos muito mais pacientes conscientes de que precisam de cuidados paliativos do que profissionais de saúde capazes de oferecer ou recomendar. Por isso estima-se que apenas 3% das pessoas que precisam recebem cuidados paliativos no Brasil.

Como a gente sabe que o paciente paliativo está em processo ativo de morte?

No livro, eu descrevo as quatro etapas do processo ativo de morte. A dissolução da terra, caracterizada pela imobilidade, movimentos lentificados, mais pesados. Depois tem a dissolução da água, que é a diminuição da ingesta de líquidos e redução da aceitação alimentar. Em seguida vem a dissolução do fogo, que é uma espécie de melhora antes da morte, a pessoa fica um pouco mais animada. Por fim, tem a dissolução do ar, que é a parte em que o paciente fica com a respiração mais esquisita, chamada de respiração agônica. Mas quando a pessoa está recebendo cuidados e conforto, vemos o rosto dela pleno, super sereno. Todos esses elementos são os sinais de que existe a proximidade da morte.

É possível ter uma morte bela?

A morte bela é uma experiência que pode acontecer quando a pessoa recebe os cuidados que ela escolheu, que ela considerou dignos, e que aconteceram de forma a respeitar a sua história de vida. A morte bela acontece quando você não prolonga nem encurta o tempo de vida daquela pessoa, quando você aceita no processo do cuidado a experiência que o paciente considera digna.

No livro, cito um exemplo trágico que aconteceria comigo e, para eu ter uma morte bela, minha experiência seria ouvir a voz das pessoas que eu amo (na obra, a autora afirma que gostaria de receber um áudio com a voz da filha, mesmo que, em teoria, não pudesse ouvir). Isso seria uma forma de respeitar a minha morte.

Outro exemplo que dou é quando o Samu vai atender um paciente idoso, demenciado, que teve uma parada cardíaca e não resistiu. A morte bela é devolver àquele corpo morto o cuidado. É abotoar a camisa do pijama, passar as mãos no rosto dele para fechar os olhos; pegar as mãos da pessoa e colocar em cima do peito. Olhar em volta, se existir um terço, por exemplo, colocar nas mãos do idoso. E dizer para a família ‘sinto muito’. Isso é uma morte bela, uma morte que foi respeitada, porque você devolve para a família um corpo cuidado e não um corpo coberto por um saco preto.

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