Domingo, 22 de dezembro de 2024

Instituição portuguesa responde a críticas dizendo: “Não roubamos nada do Brasil”

Duas obras em permanente evolução. É desta maneira que a Casa da Arquitetura de Matosinhos, na área metropolitana do Porto, em Portugal, trata quase 20 mil itens dos acervos de dois gigantes brasileiros: Paulo Mendes da Rocha, morto em maio deste ano, e Lúcio Costa, autor do Plano Piloto de Brasília. Debaixo de críticas devido à saída do Brasil de um verdadeiro tesouro, a instituição rebate e anuncia planos de resgate da memória de ambos com base na frase de Paulo: “Sabemos que não nascemos para morrer. Nascemos para continuar”.

Erguida em 2017 ao custo de € 10 milhões (R$ 65 milhões) no Edifício da Real Companhia Vinícola, monumento de interesse público, a Casa da Arquitetura entende que os acervos são como o vinho: quanto mais velhos, melhor. A conservação adequada e a paciência para desfrutar no momento certo são pontos em comum. E beber sozinho não tem a mesma graça que brindar com amigos. Esta é a filosofia do diretor, o arquiteto Nuno Sampaio, que recebeu O GLOBO na última sexta-feira.

“Não sentamos em cima. Isto aqui não é para pesquisadores ficarem contentes. A estratégia é mostrar, compartilhar com a sociedade e é isto que não existe no Brasil. Quando as pessoas dizem “roubou do Brasil”, digo que roubamos nada do Brasil, porque é o contrário: é a possibilidade de dar ao mundo esta arquitetura. Paulo disse que nascemos para continuar e estamos fazendo isso ao perpetuar a memória”, disse Sampaio.

Nem todos entenderam assim no Brasil. A Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), onde Rocha foi professor, lamentou. A USP contatou o arquiteto em setembro de 2020 para tentar ficar com o acervo, mas ele já havia doado à Casa da Arquitetura.

“Lamentamos a decisão de Paulo Mendes da Rocha, mas reafirmamos nosso compromisso com a pesquisa e a formação de novas gerações profissionais”, diz parte da nota da FAU/USP publicada na ocasião da doação, em 2020, gerando inúmeras críticas nas redes sociais e no meio acadêmico.

“Me solidarizo”, diz diretor

Paulo Mendes da Rocha, que projetou o Museu Nacional dos Coches, em Lisboa, onde Sampaio trabalhou, doou cerca de nove mil peças à Casa da Arquitetura, da qual foi sócio honorário. São maquetes, desenhos, fotos, slides, projetos, documentos etc. Alguma parte já havia sido entregue durante a “Infinito vão”, exposição de 2018 que consolidou 90 anos de arquitetura brasileira em um só lugar. É o material produzido pelo vencedor do Prêmio Pritzker 2006 desde a década de 1950. Tudo será exibido em duas exposições simultâneas em 2023, na maior retrospectiva já feita, segundo Sampaio:

“Por que Paulo Mendes da Rocha é um cara tão bom? A exposição vai explicar. Investimos na memória, mas com exposição, divulgação. Do contrário, não é investimento, é gasto. E só de manutenção permanente dos acervos gerais são € 3 milhões (R$ 19 milhões) por ano, com investimento de mecenas, patrocinadores, da prefeitura de Matosinhos e receitas próprias. Eu me solidarizo com os colegas de todo o mundo, porque é difícil para todos. Quando disseram que a Casa é única e que não haveria igual no Brasil, sabemos que não é por falta de condições técnicas de excelência, mas por falta de verba.”

Após a doação feita por Paulo, em outubro deste ano chegou a obra de Lúcio Costa, morto em 1998. O GLOBO foi um dos primeiros veículos de comunicação a ter acesso aos destaques de um acervo com 11 mil peças em fases distintas de triagem, expurgo, higienização, restauração, planificação, digitalização e arquivo.

Parte documental de autoria de Lúcio Costa, importante para entender a história contemporânea do Brasil, está armazenada junto à coleção da Casa em depósitos climatizados 24h. Se houver necessidade, algumas peças passarão pelo equipamento que elimina o oxigênio das obras, junto com a ameaça das pragas. O arquivo destinado ao material em papel tem um sistema de proteção aos incêndios que dispensa água e expele gás anti-inflamável sem arruinar os documentos. Há seis pessoas na equipe, que, segundo Sampaio, tem trabalhado em tempo integral.

Para facilitar a explicação sobre o processo, Sampaio selecionou raridades e montou uma vitrine que é a síntese da maior obra de Lúcio Costa, o Plano Piloto de Brasília. É possível ler a memória descritiva do projeto original e observar uma rara foto da capital em construção, além dos caderninhos nos quais o arquiteto registrou em desenhos uma viagem a Portugal antes de Brasília sair do papel.

“É uma loucura de trabalho. Tem até uma peça que registra a hora em que Lúcio entregou o Plano Piloto de Brasília. Está vendo algo que a maioria dos brasileiros não viu. A memória descritiva faz toda a defesa e apresentação do Plano Piloto, quando ele praticamente pede desculpas por apresentar o projeto sozinho”, explicou Sampaio.

Material disponível

Preparado para rebater as críticas, ele defende a família de Lúcio Costa e lembra do trabalho da filha, Maria Elisa Costa, ex-presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que cuidou do acervo por 20 anos.

“Não podemos questionar a família, porque ninguém no Brasil cuidou mais da memória do Lúcio do que ela, com seus próprios custos. Esta memória preservada do Brasil se deve à família do Lúcio e mais ninguém. Na grande maioria dos acervos, quando um arquiteto morre, os familiares não têm dinheiro para manter escritório ou apartamento e o arquivo vai para o lixo. Em Portugal, perdemos vários e imagino que no Brasil estejam perdendo muitos”, ressaltou Sampaio.

Os acervos também farão parte do Edifício Digital, com previsão de estreia em 21 janeiro de 2022. A concepção de um site nos moldes de um prédio físico, mas em permanente construção no ambiente on-line, é um projeto inovador em que não só o trabalho dos brasileiros, mas de todos os mestres sob curadoria da Casa da Arquitetura, estarão a um clique de distância da sociedade. E de graça.

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