Segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Lembranças que ficaram (38): “Temos cerveja, porém gelada”

Quem viajasse de carro de São Luiz Gonzaga para São Borja, na década de 50, antes do novo traçado da BR, estrada que receberia asfalto, a gente transitava pela velha estrada meio feita por carroças, meio pelo exército e por fazendeiros daquela região. Parte era conservada pelo Exército, mesmo que sem muita frequência, pois por ela, eles tinham acesso a denominada “Coudelaria do Rincão” que era, ou ainda é, uma expressiva porção de lindos campos distante de tudo, dedicado a criação de cavalos para as Forças Armadas que até hoje ainda usam, mas que até a década de 60 seu emprego era, infinitamente, maior.

Hoje o transporte e a tração é toda mecanizada e o uso de cavalos ficou bem mais reduzido e restrito a algumas atividades das tropas. Assim por essa estrada, antes de chegar em São Borja, a gente passava na Vila 13 (Sto. Antônio das Missões), Itaroquém, a Coudelaria do Rincão e Nhú Porã. Em Nhú-Porã tinha uma bifurcação missioneira muito antiga onde à direita seguia para São Borja e a esquerda seguia para Itaquí, ainda ‘distante muitas léguas’ e a partir daí, seguindo ao sul margeando o rio Uruguai e atravessando o rio Ibicuí, seu maior afluente, a gente chegava, uns 50 km depois, à Uruguaiana, na divisa com a Argentina, onde o trem de bitola larga vindo de Buenos Aires se encontrava com o trem de bitola métrica (estreita) vindo de São Paulo via Santa Maria. Por toda essa antiga estrada, a gente atravessava todo região Missioneira e quase toda fronteira oeste, ao longo do imponente Rio Uruguai. Um cenário dos pampas, tão lindo e cativante, de várzeas, campos, coxilhas e cheio de histórias, lutas e lendas. Atravessava-se alguns pequenos e médios rios altamente piscosos, frequentados por pescadores da cidade que vinham lá passar o fim-de-semana.

Acampavam rusticamente na beira do rio e lá iscavam as linhas e as jogavam no rio, churrasqueavam, conversavam e se distraiam e pescavam. Sempre pegavam bons peixes. Os rios eram fartos e limpos. Como a estrada não comportava velocidade maior, andava-se horas a não mais do que 50/60 km/h. Via-se bandos de Emas (avestruz brasileira) de veados campeiros, corujas e gaviões e centenas e centenas de cabeças de gado e cavalos. O cenário não podia ser mais lindo. Sempre junto a ponte de cada rio ou riozinho, tinha um “Bolicho” típico da campanha e nesses bolichos esses pescadores se abasteciam de sal, metade de uma ovelha já “oreada”, cerveja e pinga. Segundo a tradição a carne de ovelha não deve ser assada ou cozida no mesmo dia que se abate, sua carne não é boa ainda quente. Ela deve ficar uma noite pendurada ao relento, normalmente dentro de um saco de tecido (não de plástico) para evitar as moscas e só então prepará-la. Essa ação chama-se “orear” a ovelha. É importante fazê-lo.

A cerveja, entretanto, tinha que ser colocada na sombra dentro da água do rio para mantê-la bebível, mais ou menos “fresca” pois não havia geladeira nem caixa de isopor para levar gelo O escritor Silva Rillo conta que logo que a grande loja que tinha lá em Nhú Porã, recebera e começara a vender geladeiras a querosene, (nem se falava em eletricidade por lá, naqueles tempos) os Estanceiros mais receptivos (menos jesuítas, como diziam) e alguns poucos pequenos comerciantes (bolicheiros) moradores da campanha que conseguissem aprender a lidar com ela, então adquiriam uma. Pois, conta ele, que um desses ‘bolichos’ a beira do rio perto da ponte, comprou uma e com orgulho e certa vaidade botou uma grande placa na beira da estrada: “TEMOS CERVEJA, PORÉM GELADA”. O detalhe que quero contar é que viajando com meu pai, por essa estrada, nós passamos por essa placa e eu vi e meu pai talvez induzido por ela e pelo calor reinante, parou a caminhonete e tomou uma. Eu bebi uma gasosa… (você sabe ou lembra o que era uma ‘gasosa’?). Aquele “PORÉM” ficou registrado na minha mente… e nunca mais esqueci. Coisas incomuns e pitorescas aconteciam na campanha. Essa parte da estrada não era longe da Estância ‘Santos Reis’ que constava como sendo do João Goulart. Hoje da mesma margem, do mesmo rio, você não apenas tem “Cerveja PORÉM Gelada” como fala com o mundo através de um pequeno instrumento chamado celular. Desde 1950, a evolução técnica foi imensa, mas perdeu o romantismo.

(Luiz Carlos Sanfelice, advogado jubilado, auditor – lcsanfelice@gmail.com)

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