Segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Livro faz retrato melancólico das empresas de tecnologia

Quando, em 2013, Anna Wiener trocou seu trabalho em uma editora nova-iorquina por uma startup na Califórnia, vivia-se o auge das promessas digitais. O Facebook entrara na bolsa com uma valorização de US$ 100 bilhões, logo seguido pela Apple. Com as novas tecnologias abrindo portas, o Vale do Silício parecia ser um lugar cheio de oportunidades para uma jovem sem perspectivas no estratificado mundo editorial.

A promessa de sucesso profissional não se cumpriu, mas rendeu um livro. Seu recém-lançado “Vale da estranheza” é um testemunho em primeira pessoa sobre como as empresas de tecnologia, que traziam o aceno de salvar o mundo com novas ferramentas, rapidamente se tornaram ameaças para a democracia e para a privacidade dos cidadãos.

A agora jornalista de tecnologia busca um retrato etnológico do Vale do Silício, olhando de perto seus códigos, sua cultura, suas vestimentas, suas relações de trabalho. Com uma visão ora cômica ora melancólica, mostra como se construiu uma falsa imagem de disrupção a partir de uma mentalidade empresarial e econômica que hoje passou a ser exportada para o mundo todo.

“Muito do que foi chamado de ‘disrupção’ na última década foi uma estratégia de alavancar o capital de risco para estabelecer novos monopólios”, diz Wiener, que colabora para veículos como New Yorker e The Atlantic. “É também um processo de privatização e externalização de riscos. Acho inteligente que se descreva isso como uma imagem porque muito da narrativa sobre a disrupção era de marketing.”

Antes de tropeçar no mundo das startups, Wiener sequer tinha aplicativos em seu smartphone. Ao longo do livro, ela vai descobrindo o mundo da tecnologia junto com o leitor. Seu primeiro emprego californiano foi em uma startup que almejava se tornar uma espécie de ‘netflix dos livros’.

Ela foi contratada por causa de seu background editorial, para ajudar a empresa a entender melhor como funcionava o gosto dos leitores. Mas seus chefes eram jovens inexperientes que largaram a faculdade no meio e sequer sabiam escrever corretamente o nome de um escritor conhecido como Ernest Hemingway.

Para ingressar no seu segundo emprego, ela passou por uma entrevista constrangedora, em que gerentes alternavam perguntas que pareciam brincadeiras (“Se você fosse um super-herói, qual poder teria?”) com aforismos populares (“Agora, sim, estamos pondo a mão na massa”). Ainda que desconfortável, ela resolve ficar.

Aos poucos, torna-se obcecada por vencer naquele ecossistema de hiperprodutividade e ansiedade. O trabalho com dados, que promete respostas concretas e definitivas sobre a sociedade a partir de números (e invasão de privacidade) lhe dá uma sensação viciante de poder e controle sobre o mundo.

“Gamificação” do trabalho

Muitos chamam essa lógica de trabalho de “gamificação”, em que o funcionário trabalha como se estivesse vencendo etapas de um jogo.

“A gamificação está hoje presente na indústria da tecnologia provavelmente tanto quanto em qualquer outra indústria com riqueza, poder ou prestígio”, diz Wiener.

O livro termina com ela e outros funcionários caindo na real com a possível eleição de um “incorporador mobiliário que já tinha interpretado o papel de um executivo bem-sucedido em um reality show”. E com as utopias digitais desaguando em ferramentas de vigilância e autoritarismo. Como escreve a autora, “estávamos velhos demais para usar a inocência como desculpa”. Apesar de tudo isso, a indústria ainda hoje se esconde sob o discurso de “tornar o mundo melhor”, acredita Wiener.

“Acho que uma mentalidade orientada para a solução ainda é difundida no Vale do Silício”, diz ela. “É muito motivador para as pessoas. Mas os slogans de marketing estão sujeitos a tendências, e você ouve menos sobre ‘mudar o mundo’ do que há um ano.”

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