Quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

No fundo dos oceanos, as marcas do comércio de seres humanos

No fundo do mar, uma rede internacional de arqueólogos busca em naufrágios memórias da escravidão que marcou a formação da sociedade brasileira. Batizada de “Slave Wrecks Project” (SWP), a iniciativa procura os navios que cruzavam oceanos com seres humanos como carga.

“Cada naufrágio é um fragmento de um grande complexo global, que liga múltiplos personagens. O tráfico escravagista foi um grande projeto de globalização, e os naufrágios são o elemento mais representativo disso”, define Luis Felipe Santos, doutor em arqueologia e presidente do AfrOrigens, instituto brasileiro associado ao SWP.

Santos cita como exemplo o brigue Camargo, um dos últimos navios negreiros a aportar no Brasil, e que o AfrOrigens pesquisa. A viagem foi feita em 1852, quando a prática estava proibida havia dois anos pela Lei Eusébio de Queirós. Para apagar rastros, a embarcação foi incendiada ao chegar em Angra dos Reis. A travessia atlântica foi um empreendimento internacional: o capitão era americano, a tripulação espanhola e os clientes brasileiros.

Elo com o país

O Camargo é um dos sete naufrágios investigados pelo SWP. Não é o único com conexões com o Brasil. O primeiro a ser encontrado foi o São José, cujo destino era o Maranhão e foi a pique no Cabo da Boa Esperança em 1794, durante uma tempestade. Dos cerca de 500 escravizados a bordo, 200 salvaram-se com a tripulação. Os sobreviventes foram vendidos logo depois, na Cidade do Cabo. Dos destroços, os arqueólogos recuperaram grilhões de ferro, roldanas e balas de canhão.

O São José havia sido encontrado nos anos 80, mas foi erroneamente identificado como holandês. A correção só veio em 2015. Quatro anos antes, a descoberta de um relato do naufrágio nos arquivos da Cidade do Cabo trouxe interesse ao caso. A análise de materiais recuperados confirmou a origem do navio, que pertencia a José António Pereira, um dos magnatas do tráfico. Ele foi um dos primeiros a transportar escravizados do Leste da África até o Brasil.

“A família portuguesa dona do São José participava do comércio internacional de escravizados e financiou várias outras viagens de Moçambique para o Nordeste do Brasil. Ela estava baseada em Lisboa, mas possuía negócios que operavam de Moçambique a Angola, na África, passando por Maranhão e Montevidéu, na América do Sul, até Goa”, explica Paul Gardullo, curador do Museu de História e Cultura Afro-Americana, em Washington, uma das instituições que coordena o SWP.

O naufrágio do São José não foi a única perda do português. Em 1796, 300 escravizados escaparam em uma insurreição e outro navio, o Esperança, afundou. Nenhum desses episódios abalou o status de Pereira. Próximo à Coroa, ele batiza hoje uma travessa em Lisboa.

“Parte do trabalho do SWP é ajudar a dar voz a vozes não ouvidas”, diz Gardullo, que reflete sobre a recuperação de artefatos submersos. “Esses objetos são marcos que oferecem uma conexão com o passado e um meio para um novo futuro de compreensão e reparação pessoal e coletiva.”

Na Ilha de Moçambique, outro naufrágio conta uma história de crueldade trágica. Em 1790, o francês L’Aurore afundou em uma tempestade enquanto se preparava para zarpar para o Caribe. Dias antes, os escravizados haviam se rebelado, sem sucesso. Foram trancados no convés inferior. O temor de um novo motim fez a tripulação se recusar a abrir as escotilhas no temporal. Mais de 300 morreram.

A busca pelo L’Aurore teve início em 2017, quando um levantamento geofísico mostrou sua possível localização. A análise dos artefatos recolhidos trouxe novas evidências, como sinais de uma arquitetura naval condizente com o estilo francês e datações de carbono do fim do século XVIII. O navio tem um diferencial em relação aos demais: foi projetado para o tráfico.

“Eram construídas embarcações destinadas somente a essa atividade”, diz o arqueólogo moçambicano Cezar Mahumane, do Centro de Arqueologia, Investigação e Recursos da Ilha de Moçambique, responsável pelo trabalho.

Turismo e conservação

As buscas pelo Camargo estão concentradas em um ponto das águas de Angra, onde está um naufrágio que os pesquisadores acreditam ser do navio. Recentemente, o projeto do AfrOrigens, em parceria com o quilombo Santa Rita do Bracuí, a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a UFS, recebeu um aporte de R$ 1,7 milhão do Departamento de Estado dos EUA para a conservação dos vestígios e o desenvolvimento do turismo comunitário. Ainda este ano, é esperado que pesquisadores estrangeiros do SWP visitem o local, cooperem com os trabalhos e participem de treinamentos.

Os brasileiros pretendem pesquisar outros naufrágios em locais como Ilhéus e Maricá. Um deles é a nau Nossa Senhora do Rosário e Santo André, em Salvador. Oficialmente, ia até Goa, na Índia, adquirir itens como porcelana chinesa e voltava a Portugal. Registros, no entanto, indicam que transportava também humanos como mercadoria.

A Coroa permitia que a tripulação trouxesse escravizados como forma de compensação financeira. Apesar disso, ocorria de forma ilegal, trazendo-se muito mais do que permitido. O Santo André tinha pelo menos 130, um número absurdo para um navio que não era associado ao tráfico.

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