Domingo, 22 de dezembro de 2024

O equilíbrio que importa

A polêmica do momento é a aparente incompatibilidade entre a responsabilidade fiscal e a responsabilidade social. No meio dessa discussão, o mecanismo de “teto de gastos”, criado para impor limites aos gastos públicos, mas que não vem sendo respeitado, quer por voluntarismo do Governo, quer por imposição da pandemia da COVID. O fato é que referido teto já se encontra cheio de buracos e a PEC que o Governo eleito tenta aprovar no Congresso agrava ainda mais a saúde do mecanismo de contenção de gastos criado no Governo Temer.

Antes de emitir qualquer juízo de valor sobre o assunto, necessária se faz uma reflexão acerca do onipresente mercado, cujos sensores detectam com enorme acuidade quando seus fundamentos são de alguma forma atacados. Há, a bem da verdade, bem mais do que somente racionalidade nas reações do mercado. A ciência econômica tem se revelado, ao longo das últimas décadas, uma área do conhecimento com crescente ênfase comportamental, e isso acrescentou mais complexidade às análises. Se, por um lado, ficou mais difícil compreender certos fenômenos, de outra sorte tem-se também uma gama maior de alternativas como válvulas de escape no arsenal dos economistas. Embora seus fundamentos lógicos permaneçam intactos, a exemplo do sistema de preços, a confiança dos agentes se converte num elemento central nos humores do mercado. Ninguém supõe, por exemplo, que a credibilidade do dólar esteja somente ancorada na capacidade do tesouro americano honrar e garantir liquidez para todo o estoque daquela moeda.

Na equação do dólar, como de resto em outros ativos sujeitos à volatilidade, existe uma série de fatores, muitos deles intangíveis, psicológicos, culturais e geopolíticos que influenciam a miríade de flutuações dos preços. Digo isso para trazer à atual polêmica em torno do teto de gastos e do dilema entre a responsabilidade fiscal e social um olhar de maior abertura intelectual. É preciso humildade para reconhecer que o império da intolerância conceitual mais atrapalha do que permite novos olhares. Nessa linha, se é verdade que não respeitar os limites orçamentários impõe riscos efetivos ao equilíbrio econômico, também é verdade que o atual problema social enfrentado pelo País traz a possibilidade e a necessidade de se discutir melhor como equalizar o presente dilema. Tido por incontornável por muitos, conciliar o combate à miséria sem ferir as regras fiscais, passa a ter uma urgência inédita diante da premente necessidade em socorrer as camadas mais vulneráveis da sociedade.

A inflação, o maior e o mais injusto dos impostos, é a prova cabal de que não se produz riqueza simplesmente imprimindo mais papel moeda. Entretanto, a fome e a miséria impõem à discussão uma cunha moral que tende a ampliar o espectro de alternativas colocadas à mesa. Até o momento, somente a ortodoxia não legou ao País senão um quadro de pobreza e desigualdade acachapantes.

Assim, penso haver, a partir do reconhecimento simultâneo do sentido racional e moral em jogo, condições para um consenso legislativo na direção de novos mecanismos de geração de caixa para o governo, sem ferir os fundamentos da lógica econômica, mas propondo soluções objetivas para as lacunas sociais indesmentíveis que enfrentamos. Isso será possível, mas exigirá maturidade de nossas elites, tanto políticas quanto econômicas, no enfrentamento de temas espinhosos ligados à tributação sobre herança, sobre grandes fortunas e a revisão das desonerações fiscais, para ficar em apenas três exemplos. Tais medidas não encontrarão um terreno amistoso de início, mas assim também o foi quando das discussões sobre a abolição no século XIX, quando da criação do 13° salário em 1962, das férias remuneradas, do direito ao voto e tantas mudanças que contrariaram a elite da época num primeiro momento, mas que hoje se convertem em realidade consagrada e assimilada. Entre brigar contra os pilares do equilíbrio fiscal, ou ampliar o escopo do debate para a busca de soluções, a segunda alternativa me parece mais oportuna.

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