Domingo, 22 de dezembro de 2024
Por Redação Rádio Pampa | 25 de fevereiro de 2024
No romance Fahrenheit 451 (1953), bombeiros não são encarregados de apagar incêndios — ao contrário: eles incendeiam livros. O enredo tem como pano de fundo um governo autoritário que quer coibir a disseminação de conhecimento. A obra do estadunidense Ray Bradbury é um romance distópico e, portanto, perturba o leitor ao tentar responder à pergunta “e se?”. E se fazer fogueiras de livros fosse uma política de Estado? O título, inclusive, é uma referência à temperatura em que o papel pega fogo (em Celsius, 233°C). Mas esse assombro não está apenas na ficção.
Assim como nazistas faziam na Alemanha cerca de 90 anos atrás, no auge da perseguição a intelectuais — uma das inspirações para Bradbury escrever Fahrenheit 451 —, há casos atuais de livros sendo literalmente queimados em praça pública.
Em 2023, no México, títulos didáticos foram incendiados por opositores à reforma educacional do governo do esquerdista Andrés Manuel López Obrador, também conhecido pela sigla AMLO. Influenciada pela “pedagogia do oprimido”, filosofia do pedagogo brasileiro Paulo Freire, a proposta da reforma é levar informação aos alunos pela ótica dos direitos humanos e do olhar crítico.
Mas vários opositores, inflamados por uma teoria conspiratória da direita mexicana de que a iniciativa teria o objetivo de tornar os estudantes “comunistas” e “homossexuais” — além de apontarem erros factuais em textos —, decidiram que queimar livros era a solução.
Já no Brasil e nos Estados Unidos, casos de banimentos a obras literárias não terminam necessariamente em uma pilha de cinzas, mas na retirada deles das prateleiras de bibliotecas de escolas públicas. Em novembro de 2023, o governo de Santa Catarina, liderado por Jorginho Mello (PL), mandou retirar nove livros de escolas públicas. Alguns deles são Laranja Mecânica (1962), de Anthony Burgess; A Química entre Nós (2012), de Larry Young e Brian Alexander; e It: A Coisa (1986), de Stephen King.
O governo alegou que haveria a necessidade de adequar leituras a faixas etárias. O ofício pedia a retirada dos títulos e que eles fossem armazenados “em local não acessível à comunidade escolar.” O texto não argumenta a decisão. A Secretaria de Educação afirma que se trata de uma prática recorrente, em que livros disponíveis nas escolas são analisados e distribuídos de maneira compatível com diferentes idades e contextos educacionais. Não se trata de censura, diz a nota.
Em abril do mesmo ano, o romance Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios (2005), de Marçal Aquino, foi retirado da lista de leituras requeridas no vestibular da Universidade de Rio Verde (UniRB), em Goiás, após o deputado bolsonarista Gustavo Gayer (PL) afirmar que o livro contém “absurdos pornográficos”. Em nota à imprensa, a UniRB afirmou ter optado pela “exclusão imediata” ao tomar ciência do conteúdo da obra.
Outros exemplos não faltam. Em 2019, a Bienal do Rio esteve no centro de um acontecimento do qual você talvez se lembre. O então prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), atual deputado federal pelo RJ, mandou retirar do evento a história em quadrinhos Vingadores: Cruzada das Crianças (2012), que contém uma cena de beijo gay. A decisão foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Prefeituras sequer têm poder jurídico para isso. Representantes de Gayer e Crivella não responderam ao pedido de GALILEU por um posicionamento.
Para Richard Ovenden, autor de Queimando Livros (Globo Livros, 2022) e bibliotecário da Universidade de Oxford, na Inglaterra, esse cenário no Brasil, no México e nos Estados Unidos é, em parte, causado pela ascensão da extrema direita à presidência em vários países, como Donald Trump nos EUA (2016-2020) e Jair Bolsonaro no Brasil (2018-2022). “O autoritarismo por meio do controle de conhecimento e do subfinanciamento de bibliotecas públicas está intimamente ligado”, analisa Ovenden.
O governo Trump foi um período delicado para as bibliotecas públicas estadunidenses: elas passaram a ser boicotadas pelos orçamentos gestados pelo governo federal. E, sob a atual presidência do democrata Joe Biden, também por legisladores estaduais republicanos de estados como Louisiana, Iowa, Indiana e Tennessee, por exemplo. Segundo reportagem do site Vox, os parlamentares começam tentando banir livros e, quando não conseguem, boicotam os repasses de verbas. As ameaças tendem a acontecer nos estados em que legisladores também buscam restringir direitos de pessoas trans à saúde, performances de drag queens e discussões sobre gênero, sexualidade, raça e história nas escolas — os mesmos temas dos títulos perseguidos.
No Brasil, a realidade não é tão diferente. Perdemos ao menos 764 bibliotecas públicas entre 2015 e 2020, segundo o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP) divulgou em 2022. Sob gestão da então existente Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo, o SNBP afirmou que o número real poderia ser ainda maior em decorrência da extinção do Ministério da Cultura no governo Bolsonaro e da falta de controle efetivo pelos sistemas estaduais.
“As bibliotecas públicas em muitos municípios são um elo fundamental da cultura”, afirma Cibele Araújo, professora do curso de biblioteconomia da Universidade de São Paulo (ECA-USP), em entrevista ao Jornal da USP em setembro de 2022. “Elas podem ter ações culturais muito importantes para a formação do indivíduo, para o desenvolvimento da sua cidadania.”