Sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Para cardiologista premiado, o exercício da Medicina depende do relacionamento com o paciente

O cardiologista Protásio Lemos da Luz, pesquisador sênior do Instituto do Coração (InCor), recebeu a medalha da Ordem Nacional do Mérito Científico devido à sua contribuição para o desenvolvimento científico no país. Autor e coautor de mais de 500 estudos nacionais e internacionais, o cientista ainda realiza atendimentos em seu consultório quase todos os dias. “Fui criado na beira do leito”, diz ele, que se formou em Medicina em 1965.

Não é tão comum encontrar um médico que alie uma produção científica tão intensa com a prática médica e o cuidado com o paciente. Como se não bastasse, ele foi professor, é membro ativo de entidades de classe – inclusive, já presidiu a Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp) – e tem participação na formação de inúmeros profissionais. A atuação em tantas frentes faz Luz ter uma visão diferenciada em relação a várias questões na área de saúde. “O avanço da tecnologia é ótimo, ajuda muito na prática médica. Mas temos que considerar sempre o paciente e as circunstâncias em que doenças ocorrem”, defende.

1-O sr. acaba de receber a medalha da Ordem Nacional do Mérito Científico por causa da sua contribuição para o desenvolvimento científico no País. Como é isso em um momento em que a ciência está tão em alta entre a população?

Eu não posso me estender sobre o porquê me deram esse prêmio, mas posso dizer o que eu faço. Lá atrás, depois de ter finalizado um curso em Cardiologia, houve a decisão de criar o Instituto do Coração (InCor). E o professor Fúlvio Pileggi (1927-2021) disse que precisava de alguém para ir aos Estados Unidos estudar choque (cardíaco). Fui atrás, então, de lugares em que pudesse fazer isso, e passei dois anos na University of Southern California estudando terapia intensiva. Depois, fui para um hospital afiliado da Universidade da Califórnia (UCLA), onde passei três anos só estudando infarto em cães. Então, completei cinco anos em pós-graduações no exterior enquanto o InCor estava sendo feito. Quando o prédio ficou pronto, vim embora. Comecei na Divisão de Experimentação do Instituto, mas voltei a fazer clínica (atender pacientes) porque fui criado na beira do leito.

Fiquei fazendo investigação experimental sempre relacionada à aterosclerose coronária. E uma das coisas que iniciei foram os estudos sobre o endotélio, que inclusive resultaram em dois livros. Um tem mais de 10 anos. O outro foi publicado nos Estados Unidos há uns três ou quatro anos, e agora a editora pediu uma segunda edição. É um livro com 50 capítulos, com participação de cinco investigadores do exterior, mas o resto é tudo experiência brasileira.

2-Por falar em endotélio, assunto no qual o sr. é um pioneiro, qual a importância dele? Os estudos sobre esse tecido são relativamente recentes, certo?

É uma coisa mais recente mesmo, que tem uns 20 anos, tempo que é considerado historicamente curto na Medicina. Ele é tão importante que até levou os pesquisadores Robert Furchgott, Ferid Murad e Louis Ignarro a ganharem o Prêmio Nobel de Medicina (em 1998). E eu comecei os estudos sobre ele no InCor. Criei um laboratório para isso.

Não se tinha noção da importância do endotélio para as doenças cardiovasculares. Isso só aconteceu quando o doutor Furchgott começou as primeiras investigações. Ele notou que dentro dos vasos tem uma camada muito fina de células. Esse é o endotélio, que tem grandes funções. Esse tecido é essencial para a circulação normal do sangue. E quando o endotélio é alterado, ocorrem muitas coisas. Inicialmente, temos a aterosclerose. E ele tem participação em síndromes agudas, como o infarto.

Uma lesão ali pode levar à formação de um trombo local, sendo a causa de um infarto. São alterações que ocorrem também em um AVC (acidente vascular cerebral). Com o tempo, descobrimos múltiplas funções do endotélio. Por isso se tornou uma coisa importante. Ele é afetado por fumo, hipertensão, obesidade, etc. Tudo isso altera o endotélio.

3-Mesmo contribuindo de maneira tão expressiva para a produção científica, o sr. escreveu um livro cujo título é “Nem só de ciência se faz a cura – o que os pacientes me ensinaram”. Por quê?

O exercício da Medicina é uma coisa complexa. E ele não depende apenas do conhecimento estritamente científico – quero dizer biológico, químico etc. Depende muito também do relacionamento que temos com os pacientes.

A doença se manifesta nas pessoas, e isso não é uma experiência de laboratório. Então, escrevi esse livro que, aliás, está na terceira edição, e trata de vários aspectos ligados à interação médico-paciente. Enfatizo muito essa necessidade de o médico compreender o ser humano.

Também pensando na prática médica, e na formação dos mais jovens, escrevi outro livro, sobre as novas faces da Medicina. Nele, fiz uma análise daquilo que acho que são os grandes desenvolvimentos atuais. Por exemplo: quando eu era residente, não tinha tomografia, ecocardiograma e ressonância. Não tínhamos os testes de sangue que vemos hoje, que são muito importantes para o tratamento de doenças cardiovasculares. E fui ilustrando isso, e mostrando a evolução.

4-Atualmente, a gente vê uma discussão intensa sobre o que a ciência diz que funciona ou não na prática médica. O que acha disso?

A Medicina não é uma profissão para ganhar dinheiro. Tinha um professor de clínica médica de Curitiba, o Lyzandro de Paula Santos Lima (1906-1982), que falava uma frase espetacular: “para ganhar dinheiro em Medicina, não precisa saber Medicina, e sim saber ganhar dinheiro”. É perfeita.

Veja: virou uma indústria. Tem muita escola médica que não tem estrutura: não tem hospital, não tem professor, não tem tecnologia. Mas faz-se escola médica com a finalidade de ganhar dinheiro.

E a prática médica deve se basear em evidência científica sólida. Eu insisto muito nisso. Tem muita coisa que as pessoas simplesmente ‘chutam’, e falam que faz bem sem evidência científica. Insisto muito que o médico, ao adotar uma atitude em relação à Medicina, tem que se basear em dados científicos sólidos, e não em anedota.

5-Mas como aliar isso com aquilo que o sr. defende, que ‘nem só de ciência se faz a cura’?

O ser humano é constituído de alma e corpo. Pode-se dizer até que a alma domina o corpo. Quando vamos tratar a doença de uma pessoa, temos que considerar as duas coisas. Mas tem a parte científica, claro. Como no caso do câncer: existe uma proliferação incontrolável de um determinado grupo de células. Na aterosclerose, temos a formação de placas nas artérias e complicações. Isso é o que chamamos de ciência. São fenômenos que podem ser estudados em laboratório, que podemos ver.

Mas a ansiedade, a dor, o medo, a necessidade de tomar decisões, a importância do amparo social, a relevância da religião… Tudo isso fica em outra área. E não se pode, em Medicina, separar uma coisa da outra. Quem tem câncer sofre de duas maneiras: por causa da doença, que atrapalha os órgãos, e também emocionalmente. É nisso que insisto.

Vamos lembrar dos médicos antigos, de um século atrás. Não tinha ecocardiograma, tomografia, ressonância, exame de sangue etc. Ele sabia da parte biológica e física de acordo com o que era possível naquela época, mas conhecia as pessoas.

Há uma tendência, hoje, em várias situações, de privilegiar a tecnologia. E ouço muito isso no consultório: “Ah, o outro médico pediu 20 exames”. E isso antes de conversar com o paciente, antes de saber o que ele sente, quem ele é. A tecnologia não resolve tudo.

E também não é verdade que as coisas que surgiram mais recentemente são necessariamente melhores e vão substituir as antigas. O progresso é feito de acréscimo de conhecimentos que sejam verdadeiros. Não significa que deve descartar aquilo que já é conhecido. Nem tudo que é novo é melhor.

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