Sexta-feira, 27 de dezembro de 2024
Por Redação Rádio Pampa | 5 de maio de 2022
Durante a XVII Conferência Ibero-Americana, realizada em Santiago do Chile, em 2007, o então presidente venezuelano Hugo Chaves sentiu o gosto amargo de um inusitado aparte do Rei Juan Carlos I, de Espanha, que indagou por que Chaves não se calava, após este retrucar, de modo impertinente, aos argumentos do presidente espanhol José Luis Zapatero. A sumária, cortante e rigorosa frase do Rei João Carlos I, não apenas nos remete a reconhecer a força do verbo, mas imaginar o que envolve e caracteriza aquilo que está além da expressão em si, seu contexto, suas contingências, seus personagens e, especialmente, a carga emocional empregada. Em tempos de ânimos exaltados e falta de moderação vernacular dominando as redes sociais, muitos que deveriam calar, falam, e muitas vozes que deveriam ser ouvidas, estão mudas, não apenas por falta do que dizer, mas de ouvidos dispostos a ouvi-las. Essa polifonia truculenta tem sido terreno fértil para a disseminação de inverdades com propósitos escusos e de uma agressividade inaudita, capaz de tornar cada vez mais irreconciliáveis os polos que se confrontam.
O que, então, estaria por trás de um boquirroto grosseiro, inconveniente e inconsequente? Ao explorar a caverna de Platão, numa alusão às prisões psíquicas representadas por certas formas de comportamento, é possível compreender alguns porquês do uso de linguagem tosca, chula ou agressiva, especialmente por parte de gestores, políticos ou pessoas com influência social. A agressividade verbal, além da origem cultural, tem também um fundo psicológico, e essa condição a priori, condiciona e formata a intensidade, a modulação e as circunstâncias da fala. Nessa linha, a agressividade e as palavras de baixo calão seriam de fundo psíquico, escapando em parte o controle do próprio dizer do agente. Há, de todo modo, sempre uma mensagem subliminar que carrega uma intencionalidade para além das próprias palavras. A intenção de ofender está implícita no gesto, no próprio movimento em assumir uma postura de confronto, mesmo usando “apenas” palavras.
Freud estudou o fenômeno. Com o aval do pai da psicanálise, é possível compreender que a sexualidade reprimida é um dos elementos que repercute na forma como as inquietações e preocupações inconscientes têm efeito nas personalidades e, consequentemente, no cotidiano individual, na vida social das pessoas e nas organizações de forma geral. Personalidades perturbadas e neuróticas têm maior propensão a tentar organizar e controlar o mundo, revelando um caráter obsessivo compulsivo que pode extravasar para uma linguagem de cunho libidinoso, por vezes vulgar, que dê vazão a esse conjunto de impulsos. Dessa forma, na próxima vez que ouvir alguém mais desbocado no discurso, apelando para termos pouco recomendados, pelo menos enquanto as crianças estiverem na sala, saberá que existe uma explicação que talvez lhe tenha escapado quando em outras tentativas de melhor entendimento desse frequente fenômeno: o sujeito está reverberando uma ideia de controle, explicitando um caráter obsessivo compulsivo, caracterizando aquilo que Freud chamou de personalidade anal-compulsiva, refletindo questões profundas relacionadas à natureza psicológica do indivíduo que uma análise rasa tenderia a desprezar.
A linguagem obscena, insensível e beligerante, portanto, mesmo que possa e deva ser analisada e compreendida em sua natureza original, não deixa de ser um entrave considerável para um diálogo adequado e producente. Com as mídias sociais amplificando os discursos de forma massiva, o recado para a população de forma geral é muito ruim quando a decência é suprimida pela vulgaridade. As manifestações orais devem passar pelo mesmo escrutínio dos atos, uma vez que são as suas antessalas, e todo o desvario verbal deve também ser criticado dentro de um propósito de qualificação permanente dos discursos. Menos que isso, melhor ficar calado, antes que soframos uma justa interpelação, à Juan Carlos I, cuja pontual indignação deveria a muitos alertar.