Sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Sem parcimônia

Não podemos nos fiar somente nas regras escritas pelo homem para garantir que as palavras contidas em seus documentos institucionais sejam de fato a garantia de paz social, democracia e progresso econômico. Assim pensava o ex-presidente americano Benjamim Harrison, para o qual “Deus nunca dotou nenhum estadista ou filósofo, nem qualquer grupo ou entidade deles, de sabedoria suficiente para conceber um sistema de governo de que todos pudessem se eximir ou descuidar”. Há, implícita nessa sábia manifestação, a ideia de que a democracia requer tolerância mútua e reserva institucional, isto é, o poder, embora disponível, deve ser usado com moderação, especialmente em relação às regras não escritas, que juntamente com as regras escritas (constituições) dão forma a uma democracia de fato.

E tem sido a democracia o “locus” atual de maior inquietação de muitas sociedades, pelo abalo dos seus fundamentos, gradualmente instrumentalizados por políticas de cunho extremista, cujo exemplo mais eloquente, de forma paradoxal, vem da maior e mais longeva democracia do planeta. As primeiras semanas do novo governo americano, comandado pela segunda vez por Donald Trump, embutem ameaças institucionais, não por uma subversão de caráter revolucionário à moda antiga, mas por um novo e insidioso modo de manipulação das regras do jogo democrático.

Existe, no caso da Constituição americana e de muitas outras, um conjunto de regras não escritas capazes de impedir que os diversos “pontos cegos” existentes nas cartas magnas sejam explorados para desestabilizar o próprio sistema. A primeira dessas normas, segundo os professores de Harvard, Levitsky e Ziblatt, é o que os americanos chamam de “forbearance”, ou a tradição e a disposição de se abster de usar contra o adversário todos os recursos institucionais disponíveis, pelo bem do funcionamento do jogo político como um todo. Até hoje, no caso americano, esse autocontrole vinha funcionando, mas nos últimos tempos perdeu força, particularmente após a primeira eleição de Trump. Em seu primeiro mandato, não obstante inúmeros exemplos de violações das normas não escritas, Trump foi contido pelas instituições concebidas pelos “founding fathers”, regras, aliás, criadas para se prevenir de presidentes como ele.

Entretanto, mesmo havendo uma forte tradição americana de contenção a arroubos autoritários, moldada através de mais de dois séculos de democracia, pelo sistema de freios e contrapesos, há o pressuposto de uso judicioso das prerrogativas institucionais, que depende, em última análise, do escrutínio deliberado do Presidente. Nesse caso, os imensos poderes conferidos ao chefe do Executivo, permitem que a utilização, sem reservas, desse poder, resulte em grave disfunção e até mesmo colapso democrático. Assim, usar, sem moderação, ordens executivas, indultos presidenciais e modificação da Corte Suprema pode redundar numa Presidência Imperial, ou num “aríete constitucional”, conforme palavras de Bruce Ackerman, para descrever o imenso arsenal à disposição do Executivo da nação mais poderosa do mundo.

E são exatamente esses poderes extraordinários que a Constituição americana provê aos presidentes eleitos que agora se convertem numa ameaça real ao sistema como um todo. Há, nesse conjunto de ações presidenciais unilaterais, isso é inegável, também a tentação de um governo autoritário, inclinação que Trump demonstrou já em seu primeiro mandato e que agora sinaliza ainda de modo mais explícito. A verdadeira avalanche de ordens executivas, proclamações diretivas ou memorandos presidenciais emitidos em poucas semanas, a par de confundir e atordoar adversários políticos, Imprensa e sociedade de forma geral, estão previstos na Constituição americana. Ou seja, a despeito das imensas controvérsias e espanto ocasionados pelo modo de agir de Trump, as grades de contenção institucionais a arrivistas nunca foram muito rígidas, talvez na presunção de que não haveria algum cidadão com tamanha disposição em desestabilizar a própria democracia que jurou defender.

(edsonbundchen@hotmail.com)

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