Domingo, 22 de dezembro de 2024

“Ventanista”

Aconteceu há pouco mais de 50 anos. Era um domingo à noite, em Pelotas. Voltava de Gramado, acompanhado da mulher e filhos, depois de ter feito uma palestra para líderes sindicais rurais. Vinham de diversos sindicatos municipais dos quais era o consultor jurídico. Reclamavam das estradas municipais gaúchas – na época, muito mal tratadas. Em cada município, havia um grupo no sindicato, que eu normalmente visitava, e que me esperavam porque o “doutor” vai esclarecer sobre as leis. Ocorriam reuniões que, por falta de local, devido ao grande público, se fazia num estádio de futebol.

Havia um número expressivo de moças e moços, pretendendo entender as novidades – muitas delas, geradoras de benefícios sociais, que, até então, os rurícolas desejavam. O ambiente era de curiosidade e um pouco mais: de confiança.

Voltando ao domingo em Pelotas, chegamos em casa e a surpresa foi um momento de irritação, de perplexidade e até de desalento. As janelas abertas – largas dos quartos das crianças – foram o caminho usado pelo ladrão, agora recolhido a uma cela da cadeia da rua Padre Felício, para realizar o furto.

Na casa, roupas masculinas e femininas, grandes e pequenas, estavam atiradas nos quartos, no corredor; outras atadas em montes esquecidos, amarfanhadas. Quando convidado pelos dois delegados, o regional e o local, atravessei o pátio da velha delegacia. Era a tarde de segunda-feira. Cheguei em frente à cela do Peixotinho (nome do assaltante), que também era conhecido como “Ventanista”, simplesmente porque, em quase todos os assaltos, conseguia entrar nas residências pelas janelas. Daí, o apodo Ventanista – que significa janela, em espanhol – e pela qual normalmente realizava seus assaltos, conseguia abrir (quebrar, entortar) janelas (ou seja, ventanas, em espanhol) e realizar o assalto.

O criminoso, esquálido, magérrimo, aproximou-se quando me viu atravessando o jardim que dava acesso às grades. Quiseram me acompanhar os dois delegados de polícia, coisa que eu não gostaria que acontecesse, porque presumia que o ladrão não se animaria a falar o que eu queria ouvir. Ele, porém, adiantou-se e fez questão de me dizer: “Foi bom o senhor vir aqui, porque poderá saber as torturas, as falsidades documentais, as alterações dos depoimentos que se faz nesta casa. Os delegados nos perseguem e esses dois que estão a cercá-lo são dos mais agressivos. Aliás, vou contar para o senhor. Sou ladrão, mas eles roubam muito mais do que eu”.

Quando um delegado perguntou ao ladrão por uma correntinha de ouro desaparecida, e que eu tinha interesse em recuperar porque era um presente da avó para a neta, simplesmente não respondeu. Depois disso, dirigindo-se a mim, revelou que engolira pois, assim, evitava que lhe roubassem, na polícia, um bem valioso. E me disse: “Fique tranquilo, vou providenciar e devolver a correntinha”. Havia, no pátio, alguns policiais (inspetor, soldados da brigada, etc.) que, falando bem alto, Peixotinho mostrava que queria que ouvissem o que estava dizendo. Os delegados ao meu lado permaneciam impassíveis. Peixotinho prosseguiu: “As roupas roubadas, os policiais já retiraram do receptador, com quem eu “trabalho”. E que também “trabalha” com os delegados”. Aí me falou que ficara muito enamorado de um casaco de camurça que encontrara no meu guarda roupas. Estava vestindo a peça. Perguntou-me se eu não daria para ele. Disse – o episódio foi no inverno – que na cela passava muito frio e o casaco poderia diminuir o sofrimento e que também precisaria de cobertor porque nada lhe fora oferecido. Respondi que ele poderia ficar com o casaco e que o cobertor mandaria alguém entregar para ele.

Falei depois aos delegados que o ladrão precisava de um exame médico e remédios, porque sua aparência era realmente de alguém muito doente. Disseram-me que ele era tuberculoso, o que me levou a aumentar o mínimo de tratamento a uma pessoa humana. Em 24h tudo aconteceu: dei o cobertor e ele devolveu a correntinha. Mandei um bilhete: “Não estou te premiando, apenas te dou a oportunidade de te corrigires. Se fizeres isso, posso te ajudar. Se não fizeres, não contarás comigo”. A resposta: “Obrigado, doutor. Vou tentar”.

A deficiência do sistema penal e a desigualdade entre os brasileiros deram-lhe a tuberculose que o matou três anos e meio depois. Era culpado, mas também a sociedade e seus representantes, especialmente as autoridades do setor, eram sócios na culpabilidade.

Peixotinho era um deserdado do destino. Quando a sociedade viesse a condená-lo, ele já estaria condenado pela total falta de oportunidades que essa mesma sociedade não lhe ofereceu. Os delegados representam a realidade do quadro do qual Peixotinho era o autor principal. E também vítima.

 

Carlos Alberto Chiarelli foi ministro da Educação e ministro da Integração Internacional  carolchiarelli@hotmail.com

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